Todos temos visto, nos últimos meses, os sinais da revolução financeira que está em curso no Brasil, conduzida com maestria pelo Banco Central (Bacen). Seus componentes já se integraram à vida dos brasileiros, como o Pix, que de tão popular está sendo usado até como rede social ou mesmo de paquera. Ou, ainda, a chegada do open banking que, a partir do compartilhamento de dados entre as instituições financeiras após o consentimento do consumidor, tornará o setor mais inteligente e competitivo.
No entanto, há uma terceira perna dessa bem-vinda revolução financeira que está andando a passos bem mais lentos. Trata-se da questão chamada “interoperabilidade” entre os diferentes arranjos de pagamentos.
Regras que organizam serviços de pagamento
Os arranjos de pagamento —conceito essencial nessa discussão— são o conjunto de regras e procedimentos que disciplinam a prestação de um determinado serviço de pagamento ao público.
Assim, por exemplo, quando o pagamento é realizado por meio de cartão de crédito, existem regras definidas pela bandeira deste cartão que devem ser observadas pelas empresas que participam e operacionalizam o pagamento, com o objetivo, inclusive, de garantir que os valores sejam debitados corretamente do cliente (titular do cartão) e transferidos, no prazo definido, aos estabelecimentos comerciais.
Participam deste fluxo de pagamentos diferentes tipos de empresa, como bancos, instituições de pagamento, credenciadoras (que ofertam aos estabelecimentos os meios de captura da transação, como as famosas “maquininhas”, habilitando, assim, estes estabelecimentos a receber aquele instrumento de pagamento), dentre outros.
Fluxo entre diferentes sistemas
Já a interoperabilidade entre arranjos, conceito também essencial à discussão, significa, no contexto do Sistema de Pagamentos Brasileiro (“SPB”), os mecanismos, regras, procedimentos e tecnologias que possibilitem o fluxo de recursos entre diferentes arranjos.
Os arranjos têm diferentes classificações, podendo ou não integrar o SPB, e podem ser divididos em “abertos” e “fechados”. Os primeiros são aqueles que, de maneira geral e simplificada, estabelecem regras que utilizam instrumentos de pagamento (como os cartões de crédito) de emissão de terceiros não relacionados, além de usar o serviço de credenciadoras terceiras (também não relacionadas).
Os arranjos fechados, além de estabelecerem as regras para os pagamentos, fazem (diretamente ou por uma pessoa relacionada) a gestão de moeda eletrônica (ou seja, dos valores aportados em conta de pagamento) ou, de forma conjunta, a gestão da conta, a emissão do instrumento de pagamento e a habilitação do vendedor a receber o pagamento.
Em outras palavras, os arranjos fechados não apenas definem regras, mas podem emitir o instrumento de pagamento e habilitar diretamente os estabelecimentos para recebê-lo. Dentre os players mais tradicionais que atuam como instituidores dos arranjos abertos, encontram-se as grandes bandeiras de cartões de crédito (como a Visa e a Mastercard); já como instituidores dos arranjos fechados se podem mencionar, a título exemplificativo, soluções como PayPal, PagSeguro e Mercado Pago.
Vantagens para as empresas e os consumidores
A expansão da interoperabilidade entre os arranjos fechados e abertos apresenta uma série de vantagens ao mercado e, por conseguinte, ao consumidor: eficiência, inovação e concorrência seriam os principais. Ela permite viabilizar novos modelos de negócios e tende a reduzir os custos dos empresários (e, assim, dos clientes). Com isso, espera-se conseguir maior inclusão financeira —um tema essencial no Brasil, principalmente quando se fala de negócios de pequeno e médio porte.
Apesar das vantagens e do reconhecimento legal da importância da interoperabilidade, ainda não existe uma ampla e plena interoperabilidade entre arranjos abertos e fechados. Um dos temas que se encontra em debate no momento, consiste na sujeição dos instituidores de arranjos fechados às regras dos arranjos abertos para viabilizar a interoperabilidade.
Se, de um lado, há argumentos em torno da confiança e higidez dos arranjos abertos, de outro, surgem preocupações de que essa participação do arranjo fechado no aberto venha a ferir o pressuposto da não subordinação e desincentive a inovação e a concorrência no setor, além de haver algumas questões envolvendo segredos comerciais.
O que pensam os dois lados do serviço?
Em 2018, o Bacen abriu uma consulta pública sobre o tema da interoperabilidade e nessa ocasião os representantes de arranjos abertos e fechados apresentaram suas visões. De um lado, as grandes bandeiras de cartão de crédito argumentaram que a forma mais eficiente para haver a interoperabilidade entre os arranjos seria por meio das regras dos arranjos abertos, já que essas regras são públicas e sujeitas à prévia aprovação do Bacen.
Por outro lado, empresas representantes do modelo fechado defenderam que a interoperabilidade não deveria ser no sentido de sujeitá-los às regras do arranjo aberto, uma vez que impactaria seus modelos de negócio já que seriam obrigados a, por exemplo, fornecer informações estratégicas ou concorrencialmente sensíveis. Na prática, isso representaria uma violação ao princípio da neutralidade, uma vez que uma das partes poderia estar em posição privilegiada.
Está na lei, mas faltam detalhes para acontecer
A interoperabilidade já está na lei e em normativas do Bacen e, como resultado da consulta pública de 2018, ficou definido que o instituidor (responsável) de arranjo de pagamento aberto deve possibilitar que arranjos de pagamento fechados interoperem com ele por meio de acordos bilaterais, sendo vedado exigir a participação em determinado arranjo de pagamento como única forma de interoperabilidade com outro arranjo de pagamento.
O desafio agora é justamente tratar dos detalhes para que ela se concretize de maneira mais efetiva. Em outras palavras, há que se buscar uma solução adequada e suficiente para que os arranjos sejam efetivamente interoperáveis, permitindo ampliar o fluxo de recursos e promover inovação e concorrência.
Para que isso aconteça, será necessária, mais uma vez, uma atuação inteligente e ágil por parte do Bacen, na mesma linha do que tem sido feito com relação ao Pix e ao open banking.
Essencial para a revolução de pagamentos
Felizmente, a expectativa é que o regulador dê continuidade a uma atuação que promova mais inovação e concorrência —parâmetros de sua agenda— incluindo a interoperabilidade. O tema se tornou, hoje, essencial para o avanço na revolução dos meios de pagamento que está ocorrendo no país.
Quando terminar de ser implementada, permitirá inovação, concorrência e eficiência, com vantagens claras para a economia e para a população em geral. Assim, ações continuadas do Bacen na definição de standards mínimos que orientem a interoperabilidade, considerando as impressões e ouvindo ativamente os arranjos de pagamento abertos e fechados, parece ser o caminho adequado a se seguir nesse momento.